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“O Mundo em 2022” - Intervenção do Presidente da República na sessão solene de abertura do ano académico do Instituto da Defesa Nacional

A minha primeira palavra vai naturalmente para os homens e as mulheres que, lá fora como cá dentro, nas nossas Forças Armadas, servem neste momento a Pátria, esperando sempre que a Pátria corresponda ao seu serviço corajoso e devotado agora e sempre.

A segunda palavra destina-se a felicitar, na pessoa da Senhora Diretora, o Instituto da Defesa Nacional, de que guardo boas recordações das primeiras vindas aqui, nos anos 70 e 80 do século passado, pela excelência do trabalho que desenvolve precisamente há tantas décadas, na promoção da investigação e ensino sobre segurança, defesa, política externa e geoestratégia, democratizando o conhecimento, aproximando gerações, cuidando do debate plural em democracia. Razão esta adicional para que, a cada viragem de ciclo histórico – como a que estamos a viver –, o Instituto da Defesa Nacional repense e enriqueça o seu papel em prioridades e iniciativas, como aqui ouvimos, dentro de uma mesma linha de serviço à causa coletiva.

Hoje, mais do que nunca, precisamos que a democracia seja capaz de mobilizar os cidadãos para os grandes debates contemporâneos, para os grandes desígnios de Portugal, para os perigos que assolam a nossa segurança coletiva. Essa mobilização, deve partir de compromissos políticos sólidos e estáveis, dando a consistência indispensável à permanência dos nossos interesses nacionais, independentemente dos sucessivos contextos estratégicos, fazendo da previsibilidade na execução das políticas públicas uma virtude comparativa.

Por maioria de razão em tempo em que se repensa, matéria tão querida do agora desaparecido Professor Adriano Moreira, o Conceito Estratégico de Defesa Nacional, que se quer mais anglo-saxónico do que latino, enxuto, claro na forma como no conteúdo, flexível, elegendo as verdadeiras prioridades, e dispensando o rol de sonhos, desafios, ações concretas que irresistivelmente tendem a povoar aquilo que deve ser, sobretudo, um roteiro essencial transformando num enunciado de tudo o que possa existir na terra e nos céus.

O tema de hoje é “O Mundo em 2022”.

O mundo em 2022 é caracterizado, entre outras dimensões, por uma profunda pressão sobre as democracias, com a concorrência alastrada de modelos autoritários e híbridos, cujo encanto colhe, não só em países dentro e fora da Europa, mas também em Partidos que conquistaram um espaço nos sistemas democráticos ocidentais nos últimos anos.

Temos hoje, à escala global, menos democracias do que há dez, vinte anos. A primeira reflexão que gostaria de vos deixar é exatamente esta: a democracia precisa de ser cuidada na forma e no conteúdo, preservada nos seus valores inegociáveis, reformada nos seus elementos mais cristalizados, rejuvenescida nos seus protagonistas, numa adaptação às grandes transições que o mundo de facto atravessa. E numa capacidade de resposta a problemas concretos de pessoas de carne e osso que formam as comunidades e são – tantas vezes – bem diferentes da visão dos círculos políticos e mediáticos específicos.

O mundo em 2022 é, ainda, reflexo dos traumas da longa pandemia dos últimos dois anos. A descoordenação multilateral, as disrupções logísticas e comerciais, o fecho de fronteiras, o início do ciclo inflacionista nas matérias-primas, produtos agrícolas e recursos energéticos, a disputa da verdade científica, a contestação à autoridade das lideranças políticas, são tudo dinâmicas expressas na gestão da Covid, das quais ainda estamos a ajustar respostas e a sofrer com os seus efeitos diretos, muitos deles acantonando ainda mais as sociedades mais pobres e vulneráveis do planeta, as grandes vítimas das alterações climáticas, das secas prolongadas, dos fenómenos atmosféricos calamitosos, do aumento do nível do mar, sendo ao mesmo tempo as que menos contribuem para as emissões de dióxido de carbono globais.

A pandemia e agora a guerra, afrontosamente desencadeada pela Federação Russa violando valores e princípios universais, cavaram o fosso das desigualdades entre continentes, com níveis diametralmente diferentes de recuperação económica, paz social, boa governação e predisposição multilateral. Aqueles que melhor saírem desta dupla crise sistémica têm o dever, juntamente com as organizações regionais e internacionais atualizadas, de tudo fazer para esbater esse fosso, reduzir a insegurança humana e não deixar cair o combate às alterações climáticas por razões económicas conjunturais. Atenção que a pandemia e a guerra, constituindo fatores novos e decisivos na mudança em curso, não são separáveis, nos seus efeitos, para não dizer nalguns dos seus traços ou causais ou de gestão imediata, do contexto geopolítico preexistente, nomeadamente, da crise de vetores cruciais dos sistemas democráticos.

Podemos também assumir que o mundo em 2022 abriu uma nova era na ordem internacional – e veremos a seu tempo se uma nova ordem internacional, mesmo, ou apenas uma nova balança de poderes –, mas para já esta era está marcada pela competição aberta entre grandes potências mais do que pela sua acomodação, nalguns casos a roçar a beligerância política e comercial, noutros a ameaça e a concretização da confrontação militar. Esta competição aberta e assumida, sendo sobretudo geopolítica, tem decorrências em novas esferas de influência económica, novas rotas comerciais, novas explorações energéticas, e sobretudo numa competição por matérias-primas críticas às revoluções tecnológicas em curso. O desafio global de todos os que defendem a normatização das relações internacionais, a afirmação da diplomacia sobre a guerra, passa por antecipar estas tendências e fazer tudo o que estiver ao seu alcance para reorganizar o sistema internacional. Sem ilusões quanto ao facto de que nessa reorganização, mais ou menos profunda, o primado nunca será da economia, será sempre da política.

Expressão de tudo isto é a guerra na Ucrânia que, tendo um epicentro na Europa, acrescenta-lhe globalidade pelos atores envolvidos direta e indiretamente no terreno, mas também pelos efeitos universais que provoca. Se acelerou uma revolução energética, redefinindo relações de compra e venda e de apostas mais consistentes em energias não-fósseis, tornou ainda mais inevitável que a Segurança e a Defesa tenham uma nova dignidade na hierarquia das políticas públicas, quer na afetação de recursos, quer na dimensão cooperativa presente nas alianças e organizações multilaterais.

E aqui, paro um instante para dizer que é fácil falar na prioridade que representa no contexto atual o desafio da Segurança e da Defesa, mais difícil é concretizá-lo não em promessas, mas em factos em termos de prioridade das comunidades e dos poderes políticos nesses domínios fundamentais.

A centralidade da NATO na segurança europeia acabou por ver reconhecida uma força extra com a materialização da ameaça militar russa, com as recentes adesões da Suécia e da Finlândia em quase concretização, e com a coesão institucional renovada nos últimos meses, apesar dos anos da administração Trump, da saída do Reino Unido da União Europeia, e da autonomia estratégica da Turquia.

E, claro, das interrogações acerca do não retorno do Trumpismo e da solidez e da criatividade da Europa com geometrias variáveis em equação durante este compasso de espera, imaginativamente chamado Comunidade Política Europeia, novo nome francês para a Confederação Europeia de Mitterrand, nos anos noventa.

A ordenação da Europa, em curso na União Europeia, já não em contexto de paz, mas de guerra, pode acabar por dar-lhe uma valência renovada na gestão da resposta conjunta a uma pandemia transnacional, a uma nova crise de refugiados vinda do Leste, a uma sustentação financeira e militar à Ucrânia e à sua reconstrução, e ainda aos ritmos e arrumos dos futuros alargamentos aos Balcãs Ocidentais e ao Leste europeu. Assim a União Europeia se mantenha unida, seja lúcida, preserve o elo crucial ao mais poderoso aliado transatlântico, saiba adaptar-se às novas realidades, mas não se esqueça de que há muito mais mundo do que Europa e Estados Unidos da América, a começar na urgentíssima África, e indo até às relevantíssimas América Latina e Ásia-Pacífico.

Já as Nações Unidas, sob cerco apertado na gestão da vacinação global e com um Conselho de Segurança bloqueado pelos vetos cruzados entre alguns dos seus membros permanentes, conseguiu recuperar «in extremis» um papel insubstituível, pelo talento do seu Secretário-Geral, nas dimensões humanitárias nalguns dos piores conflitos em curso, como na Síria ou na Ucrânia, nas negociações em crises de segurança alimentar, na firmeza em não deixar cair a prioridade ao combate às alterações climáticas ou à proteção dos oceanos, ou mesmo numa feliz reinterpretação dos poderes da Assembleia Geral, hoje mais assertiva sobre as entropias criadas pelo Conselho de Segurança na gestão de crises internacionais.

Podemos, por isso, dizer que a erosão multilateral é uma das crises que também domina o mundo em 2022, mas igualmente apontar bons exemplos de resiliência e adaptação de organizações internacionais, as quais delegam o seu sucesso na vontade dos seus membros, o que indicia não existir uma vontade generalizada e, sobretudo, duradoura em contribuir para matar ou definhar os instrumentos multilaterais, mas para os preservar e atualizar instantemente na futura gestão de crises.

O mundo em 2022 tem assistido a um modelo chinês em crise. Desde 1990 que a economia chinesa não crescia abaixo da média asiática. A dívida pública aumentou 40 pontos percentuais numa década e a natalidade caiu para metade. Se as disrupções logísticas e o arrefecimento económico foram patentes e transversais durante a pandemia, a política da Covid-zero e as medianas taxas de vacinação travaram a recuperação chinesa, cujo crescimento neste ano é três vezes inferior à média dos últimos trinta anos. A parceria estratégica com a Federação Russa, com traços mais do que musculados semelhantes, embora assumindo um imperialismo expansivo fora de portas, parece uma aliança entre iguais, mas tal não passa de uma ilusão. Uma é uma potência global emergente, a outra uma potência regional a querer ressurgir como global. A postura da Rússia na Ucrânia é incómoda para a China, protelando ainda mais a sua recuperação económica, e é, nomeadamente, no aproveitamento destas dissonâncias que deve estar o foco euro-americano, não se satisfazendo com o simplismo geoestratégico de tratar como iguais pesos e situações que são bastante diversos.

E, como tenho, notado, ao longo desta fala ao referir-me à China, noto ter sido parco em referências à Federação Russa. Limitar-me-ei a sublinhar que, até ao momento, e repito, até ao momento, o ensaio – se disso se tratou – de recuperar poder global onde havia poder regional não tem beneficiado de perceções, obviamente certeiras, nem de demonstrações estratégicas, políticas e militares suficientemente convincentes.

O mundo em 2022, por outro lado, tem várias potências regionais em processos de transição ou assumindo um novo valor geograficamente alargado. O nosso irmão Brasil acompanha as tensões populistas à esquerda e à direita que vão adiando o futuro da América Latina. Mas pode ter mais uma oportunidade geoestratégica se conseguir preservar a coesão interna, se afirmar um duradouro poder económico e uma prospetiva visão internacional. A Turquia, apesar da crise financeira, reconquistou uma geometria de atuação entre o Médio Oriente, o Cáucaso e o Mediterrâneo, que merece acompanhamento detalhado. Veja-se o reviver do acordo cerealífero. Tudo isto ainda que se sabendo de que muito depende, sobretudo de uma liderança personalizada. O Irão vive um processo de revolta anti teocrática, assente na defesa dos direitos das minorias étnicas com origem fora das grandes cidades, com um papel fundamental das mulheres e dos jovens, que precisa de atenção redobrada e bem informada. A Índia – bem mais importante ainda do que os demais – continua à procura de um papel alternativo à hegemonia regional da China. Sempre muito introvertida e cuidadosa no seu protagonismo externo. E a Nigéria, maior economia africana, parece ter encontrado, para já, uma estabilidade mínima que a projete no debate energético e securitário internacional. Assim, essa estabilidade, resista às pulsões externas motivadas por cobiças ou interesses terceiros, com eco interno.

O mundo em 2022 passou a acompanhar, ostensivamente, a centralidade das matérias-primas críticas como recurso indispensável à transição digital, à sociedade de consumo e ao posicionamento concorrencial entre grandes produtores e exportadores. Tal deve ser visto na moldura global da crescente procura de matérias-primas devido ao crescimento da população, à industrialização, à descarbonização dos transportes, dos sistemas energéticos e de outros setores industriais, ao aumento da procura por parte dos países em desenvolvimento, e às novas aplicações tecnológicas.

Neste contexto, a existência de um cada vez maior apetite por recursos (energia, alimentos e matérias-primas) está já a exercer uma pressão extrema sobre o planeta, representando metade das emissões de gases com efeito de estufa, mais de 90% da perda de biodiversidade e de stress sobre os recursos hídricos. Sem uma intensificação da economia circular e uma melhoria na sustentabilidade dos recursos, dificilmente se atingirá aquilo que se sonhou para metas da neutralidade climática até 2050.

Até 2030, a União Europeia prevê necessitar de 18 vezes mais lítio e 5 vezes mais cobalto do que atualmente, com vista ao incremento industrial das baterias de veículos elétricos e ao armazenamento de energia. Para termos uma noção do que estamos a falar, a União Europeia extrai e produz hoje menos de 5% das matérias-primas críticas em todo o mundo, ao passo que a sua indústria é responsável por cerca de 20% do consumo mundial dessas matérias. Por exemplo, a China fornece 98% do aprovisionamento da União Europeia em elementos de terras raras, a Turquia 98% de borato e a Africa do Sul 71% das necessidades em platina. A procura de terras-raras utilizadas em ímanes permanentes (por exemplo, para veículos elétricos, tecnologias digitais ou geradores eólicos) pode aumentar dez vezes até 2050. Quando falarmos de reindustrialização ou de autonomia estratégica, deveremos olhar com grande atenção para estes pequenos grandes dados.

O mundo em 2022 tem também comprovado a frequência e intensidade de desastres e catástrofes naturais como cheias, secas ou incêndios, os quais representam uma ameaça à segurança dos cidadãos e ao normal funcionamento das instituições, sendo potenciadores de pressão acrescida sobre Estados frágeis e sobre recursos escassos. As recentes cheias no Paquistão disso são eloquente exemplo.

Estamos hoje bem mais conscientes do bem escasso que é, por exemplo, a água. Vale a pena lembrar que cerca de 160 países dependem de bens alimentares importados, o que significa que há uma minoria que assegura a alimentação da maioria dos povos. Vale a pena também termos em conta que, segundo relatórios da ONU, 40% da população mundial vive atualmente já em “escassez de água” e que outros estudos apontam para migrações forçadas por esse motivo, até 2030, na ordem das 700 milhões de pessoas. O drama em curso é um caldo explosivo de fatores, não só torna a relação produtores/consumidores agrícolas potencialmente danificada, como objetivamente aumenta o grau de conflitualidade em geografias variáveis. Falo de secas prolongadas, escassez de água, aumento do nível do mar, alterações de fronteiras, maior insegurança alimentar, alta de preços de bens essenciais, deslocações massivas de pessoas para as grandes cidades e pressão descontrolada sobre os seus recursos e serviços, revoltas sociais, guerras civis e, como se não chegasse, uma tendência global para o nacionalismo capaz de minar muito do que resta dos bons ofícios diplomáticos.

E Portugal, no meio deste mundo de 2022, onde se posiciona?

Tem uma estratégia nacional firme, consistente, confiável, até porque corresponde a uma vocação há muito afirmada. E que se projeta nas políticas externa, de segurança e defesa. Sem modismos. Apenas com acentos tónicos de conjuntura.

É um «honest broker» da diplomacia internacional. Tem uma geografia ímpar na geopolítica da energia e no comércio marítimo internacional, com uma área territorial oceânica em expansão e relevância. Tem presença ativa e um diálogo permanente com nações de todos os continentes, inclusive com as grandes potências. Tem uma diáspora importante, mais jovem, mais mobilizada e mais competitiva. É uma democracia madura, com estabilidade e paz social. É uma economia aberta e um aliado confiável nas organizações e alianças em que ativamente participa. Apesar disto, mas também por causa disto, somos um país vulnerável aos choques externos, às tensões regionais e às crises globais.

Mas, também por causa disto, beneficiamos de ganhos objetivos em tempos de maior incerteza, risco ou aleatoriedade. O investimento externo em curso, o turismo, a procura de residência segura, aí estão para o confirmar como estiveram durante a Segunda Guerra mundial.

Precisamos, por isso, de nos mobilizar, em constância, para os grandes debates estratégicos, antecipar as grandes tendências, fazer as opções com permanente acerto, evitar cisões temerárias, alocar os recursos com maior equidade intergeracional, decidir com base em melhor informação, sensatez e horizonte de longo prazo.

O mundo em 2022 pode estar em turbulência acelerada, mas a minha confiança em nós próprios nunca esmorece.

Como não haveria de ser assim se sabemos, na base da nossa História e das Geografias a que chegámos muito antes dos demais, o que outros há pouco descobriram ou estão agora a descobrir?

Esse Saber de Ciência feita – que o mesmo é dizer de Conhecimento dos Mundos e das Pessoas feito ao longo dos séculos – é a razão decisiva para acreditar, para acreditarmos, mais e mais em Portugal e nos Portugueses.

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