O Presidente da República promulgou hoje diplomas relativos a três temas centrais:
- medidas de apoio social às famílias e empresas, tendo em conta os efeitos sociais e económicos da pandemia Covid-19;
- luta contra a violência doméstica;
- funcionamento dos tribunais.
E enviou um outro diploma para o Tribunal Constitucional, para fiscalização preventiva de constitucionalidade, com o objetivo de clarificar matéria controvertida sobre correio eletrónico.
Assim, sublinhando a necessidade de serem mantidos apoios à proteção dos créditos bancários das famílias e das empresas, tendo em conta os impactos sociais e económicos da pandemia, o Presidente da República promulgou o diploma do Governo que estabelece medidas de proteção para os clientes bancários abrangidos pelas medidas excecionais e temporárias de proteção de créditos e altera o regime relativo à prevenção e regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito.
No mesmo sentido de apoios às famílias, o Presidente da República promulgou também o diploma do Governo que estabelece as regras de garantia de fornecimento de serviços essenciais.
Sendo a luta contra a violência doméstica uma preocupação central e reconhecendo que os filhos são também vítimas de tal situação, o Presidente da República promulgou ainda o diploma da Assembleia da República que alarga a proteção das vítimas de violência doméstica, alterando a Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, o Código Penal e o Código de Processo Penal.
No domínio da isenção e independência dos Tribunais, o Presidente da República promulgou ainda o diploma da Assembleia da República que introduz mecanismos de controlo da distribuição eletrónica dos processos judiciais, alterando o Código de Processo Civil, e o que introduz mecanismos de controlo da distribuição eletrónica dos processos da jurisdição administrativa e fiscal, alterando o Código de Processo nos Tribunais Administrativos e o Código de Procedimento e de Processo Tributário.
Parecendo oportuno clarificar, antecipadamente, a conformidade constitucional do novo regime de acesso a informação eletrónica sensível, e a compreensível preocupação que pode suscitar em termos de investigação criminal, designadamente perante as dúvidas levantadas no parecer da Comissão Nacional da Proteção de Dados e as resultantes de jurisprudência nacional e europeia, o Presidente da República decidiu suscitar junto do Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva da constitucionalidade de disposição contida no diploma da Assembleia da República relativo ao combate à fraude e à contrafação de meios de pagamento que não em numerário, alterando o Código Penal, o Código de Processo Penal, a Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, que aprova a Lei do Cibercrime, e outros atos legislativos, nos termos do requerimento em anexo.
Requerimento enviado ao Tribunal Constitucional (pdf)
Excelentíssimo Senhor Conselheiro Presidente
do Tribunal Constitucional
Excelência,
Nos termos do n.º 1 do art.º 278.º da Constituição da República Portuguesa, bem como do n.º 1 do art.º 51.º e n.º 1 do art.º 57.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, venho requerer ao Tribunal Constitucional, com os fundamentos a seguir indicados, a apreciação da conformidade com a mesma Constituição das seguintes normas constantes do Decreto n.º 167/XIV da Assembleia da República, registado na Presidência da República, no dia 4 de agosto de 2021, para ser promulgado como lei:
- as normas constantes do artigo 5.º, na parte em que altera o artigo 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro.
1.º
Pelo Decreto n.º 167/XIV, a Assembleia da República aprovou a lei relativa ao combate à fraude e à contrafação de meios de pagamento que não em numerário, alterando o Código Penal, o Código de Processo Penal, a Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, que aprova a Lei do Cibercrime, e outros atos legislativos.
2.º
O Decreto em causa procede à transposição de Diretiva europeia. Contudo, e como se admite na exposição de motivos da própria proposta de lei, o legislador aproveitou a oportunidade para alterar normas não diretamente visadas pela Diretiva.
3.º
É o caso da alteração ao artigo 17.º da Lei do Cibercrime. Com efeito, como referido na exposição de motivos: “Noutro plano, e ainda que se trate de um aspeto não respeitante à transposição da Diretiva (UE) 2019/713, aproveita-se o ensejo para ajustar o artigo 17.º da Lei do Cibercrime, cujo teor tem gerado conflitos jurisprudenciais que prejudicam a economia processual e geram dúvidas desnecessárias.
Este ajustamento tem como propósito clarificar o modelo de apreensão de correio eletrónico e da respetiva validação judicial.
Visa-se, por um lado, esclarecer que a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de natureza similar está sujeita a um regime autónomo, que vigora em paralelo com o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal. Este último regime apenas se aplica à apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de natureza similar a título subsidiário, e com as necessárias adaptações.
Visa-se, por outro lado, esclarecer que a apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de natureza similar guardadas num determinado dispositivo, embora incidindo sobre dados informáticos de conteúdo especial, não é tecnicamente diferente da apreensão de outro tipo de dados informáticos. Assim, deve o Ministério Público, após análise do respetivo conteúdo, apresentar ao juiz as mensagens de correio eletrónico ou de natureza similar cuja apreensão tiver ordenado ou validado e que considere serem de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, ponderando o juiz a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto.
Esta solução procura replicar, no domínio das mensagens de correio eletrónico ou de natureza similar, a solução presentemente aplicável aos dados e documentos informáticos cujo conteúdo possa revelar dados pessoais ou íntimos, pondo em causa a privacidade do respetivo titular ou de terceiro, nos termos do n.º 3 do artigo 16.º da Lei do Cibercrime”.
4.º
É o seguinte o conteúdo da alteração em causa:
“Artigo 17.º
Apreensão de mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante
1 - Quando, no decurso de uma pesquisa informática ou de outro acesso legítimo a um sistema informático, forem encontradas, armazenadas nesse sistema informático ou noutro a que seja permitido o acesso legítimo a partir do primeiro, mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante que sejam necessárias à produção de prova, tendo em vista a descoberta da verdade, a autoridade judiciária competente autoriza ou ordena por despacho a sua apreensão.
2 - O órgão de polícia criminal pode efetuar as apreensões referidas no número anterior, sem prévia autorização da autoridade judiciária, no decurso de pesquisa informática legitimamente ordenada e executada nos termos do artigo 15.º, bem como quando haja urgência ou perigo na demora, devendo tal apreensão ser validada pela autoridade judiciária no prazo máximo de 72 horas.
3 - À apreensão de mensagens de correio eletrónico e de natureza semelhante aplica-se o disposto nos n.ºs 5 a 8 do artigo anterior.
4 - O Ministério Público apresenta ao juiz, sob pena de nulidade, as mensagens de correio eletrónico ou de natureza semelhante cuja apreensão tiver ordenado ou validado e que considere serem de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova, ponderando o juiz a sua junção aos autos tendo em conta os interesses do caso concreto.
5 - Os suportes técnicos que contenham as mensagens apreendidas cuja junção não tenha sido determinada pelo juiz são guardados em envelope lacrado, à ordem do tribunal, e destruídos após o trânsito em julgado da decisão que puser termo ao processo.
6 - No que não se encontrar previsto nos números anteriores, é aplicável, com as necessárias adaptações, o regime da apreensão de correspondência previsto no Código de Processo Penal”.
5.º
Deste modo, como se vê, a alteração em causa não constitui um mero “ajustamento”, mas a uma mudança substancial no paradigma de acesso ao conteúdo das comunicações eletrónicas, admitindo-se que esse acesso caiba, em primeira linha, ao Ministério Público, que só posteriormente o apresenta ao juiz.
6.º
O Tribunal Constitucional tem dedicado atenção recente, numa leitura estrita, ao acesso por parte de entidades públicas às comunicações, sejam no seu conteúdo, sejam os metadados (vd. Acórdão TC n.º 464/2019).
7.º
Por outro lado, como bem alerta a Comissão Nacional de Proteção de Dados no seu parecer (Parecer 2021/74), jurisprudência recente do Tribunal de Justiça da União Europeia, em caso semelhante, entendeu que o Ministério Público, por deter a ação penal, não possui a independência requerida para apreciar a necessidade de acesso ao conteúdo das comunicações, razão pela qual essa tarefa deve ser cometida ao juiz.
8.º
O regime aprovado parece divergir, por outro lado, do disposto no artigo 179.º do Código do Processo Penal, no qual a intervenção do juiz ab initio é indispensável. Esta é também a opinião expressa pela Comissão Nacional de Proteção de Dados no seu parecer.
9.º
Com efeito, é o seguinte o conteúdo do artigo 179.º do Código do Processo Penal:
“Artigo 179.º
Apreensão de correspondência
1 - Sob pena de nulidade, o juiz pode autorizar ou ordenar, por despacho, a apreensão, mesmo nas estações de correios e de telecomunicações, de cartas, encomendas, valores, telegramas ou qualquer outra correspondência, quando tiver fundadas razões para crer que:
a) A correspondência foi expedida pelo suspeito ou lhe é dirigida, mesmo que sob nome diverso ou através de pessoa diversa;
b) Está em causa crime punível com pena de prisão superior, no seu máximo, a 3 anos; e
c) A diligência se revelará de grande interesse para a descoberta da verdade ou para a prova.
2 - É proibida, sob pena de nulidade, a apreensão e qualquer outra forma de controlo da correspondência entre o arguido e o seu defensor, salvo se o juiz tiver fundadas razões para crer que aquela constitui objeto ou elemento de um crime.
3 - O juiz que tiver autorizado ou ordenado a diligência é a primeira pessoa a tomar conhecimento do conteúdo da correspondência apreendida. Se a considerar relevante para a prova, fá-la juntar ao processo; caso contrário, restitui-a a quem de direito, não podendo ela ser utilizada como meio de prova, e fica ligado por dever de segredo relativamente àquilo de que tiver tomado conhecimento e não tiver interesse para a prova.
10.º
Torna-se, pois, claro que o regime agora aprovado se parece afastar, substancialmente, do disposto no Código de Processo Penal em matéria de correspondência, onde é sempre exigida a intervenção do juiz.
11.º
O legislador justificou, em parte, na exposição de motivos, a necessidade da presente alteração com a resolução “conflitos jurisprudenciais”. Se é certo que a jurisprudência nem sempre tem sido linear na aplicação desta norma (vd., entre outros, Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 29-03-2011), também é verdade que alguma jurisprudência parece apelidar a confusão de “aparente” (vd. Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-02-2018). Seja como for, seria importante assegurar que a tais alegados “conflitos jurisprudenciais” não fosse agora acrescentada a dúvida de eventual não conformidade constitucional do regime aprovado.
12.º
Por outro lado, a nova redação dada ao artigo 17.º aproxima-se, é certo, do regime em vigor no artigo 16.º. Sucede que, como alerta a Comissão Nacional de Proteção de Dados, o artigo 16.º refere-se a dados informáticos, o que – de modo diverso do que parece resultar da exposição de motivos – não inclui necessariamente dados pessoais nem o conteúdo das comunicações, razão que justifica um regime menos exigente.
13.º
Não por acaso, o legislador tratou em artigos diversos da apreensão de dados informáticos e da apreensão de correio eletrónico e registos de comunicações de natureza semelhante, justamente por esta última dever justificar um regime mais rigoroso de acesso.
14.º
Ora, a admitir-se esta interpretação, o regime em causa seria assim suscetível de introduzir novas restrições ao disposto no artigo 34.º, em especial no seu número 4, e no artigo 35.º, todos da Constituição. Tais restrições, nesse caso, poderiam não respeitar os termos estritos do citado n.º 4 do artigo 34.º, na interpretação que lhe tem sido dada pelo Tribunal Constitucional, o disposto no artigo 35.º, nem a exigência de proporcionalidade resultante do regime material dos direitos, liberdades e garantias, constante do n.º 2 do artigo 18.º da Constituição.
Ante o exposto, perante as dúvidas suscitadas, parece oportuno clarificar, antecipadamente, a potencial não conformidade constitucional deste novo regime, e a compreensível preocupação que pode suscitar em termos de investigação criminal.
Assim, requer-se, nos termos do n.º 1 do art.º 278.º da Constituição, bem como do n.º 1 do art.º 51.º e n.º 1 do art.º 57.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, a fiscalização preventiva da constitucionalidade das normas do artigo 5.º, na parte em que altera o artigo 17.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, constantes do Decreto n.º 167/XIV da Assembleia da República, por violação do disposto no n.º 4 do artigo 34.º, no artigo 35.º, e no n.º 2 do artigo 18.º, todos da Constituição da República Portuguesa.
Apresento a Vossa Excelência os meus mais respeitosos cumprimentos.
Lisboa, 4 de agosto de 2021
O Presidente da República
Marcelo Rebelo de Sousa