Saltar para o conteúdo (tecla de atalho c) Mapa do Sítio
Este sítio utiliza cookies apenas para melhorar a funcionalidade e a sua experiência de utilização. Ao navegar neste sítio está a consentir a utilização dos mesmos.

Presidente da República devolve, sem promulgação, decreto da Assembleia da República sobre morte medicamente assistida, envolvendo a eutanásia e o suicídio medicamente assistido

O Presidente da República devolveu, sem promulgação, o Decreto da Assembleia da República n.º 199/XIV, de 5 de novembro de 2021, que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal, nos termos da nota e da mensagem infra.

O Presidente da República decidiu, hoje, devolver à Assembleia da República o decreto sobre morte medicamente assistida, envolvendo a eutanásia e o suicídio medicamente assistido, recebido no dia 26 de novembro.

Formulou, ao devolvê-lo, duas solicitações, ambas sobre questões surgidas só nesta segunda versão da lei:

1ª - Que clarificasse o que parecem ser contradições no diploma quanto a uma das causas do recurso à morte medicamente assistida. O decreto mantém, numa norma, a exigência de “doença fatal” para a permissão de antecipação da morte, que vinha da primeira versão do diploma. Mas, alarga-a, numa outra norma, a “doença incurável” mesmo se não fatal, e, noutra ainda, a “doença grave”.
O Presidente da República pede que a Assembleia da República clarifique se é exigível “doença fatal”, se só “incurável”, se apenas “grave”.

2ª - A deixar de ser exigível a “doença fatal”, o Presidente da República pede que a Assembleia da República repondere a alteração verificada, em cerca de nove meses, entre a primeira versão do diploma e a versão atual, correspondendo a uma mudança considerável de ponderação dos valores da vida e da livre autodeterminação, no contexto da sociedade portuguesa.


Mensagem enviada ao Presidente da Assembleia da República:

“Palácio de Belém, 29 de novembro de 2021

Dirijo-me a Vossa Excelência, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 136.º da Constituição, transmitindo a presente mensagem à Assembleia da República sobre o Decreto da Assembleia da República n.º 199/XIV, que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal, nos termos seguintes:

1. Pelo Acórdão n.º 123/2021, publicado em 12 de abril de 2021 o Tribunal Constitucional decidiu pronunciar -se pela inconstitucionalidade da norma constante do artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República, publicado em 12 de fevereiro de 2021, que regulava as condições em que a morte medicamente assistida não seria punível, para o efeito alterando o Código Penal.

Fê-lo com fundamento na violação do princípio de determinabilidade da lei enquanto corolário dos princípios do Estado de direito democrático e da reserva de lei parlamentar, decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, por referência à inviolabilidade da vida humana consagrada no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição.

Em consequência, pronunciou-se pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 4.º, 5.º, 7.º e 27.º, todos do citado Decreto n.º 109/XIV.

2. Na ocasião, o mesmo Acórdão recordou que havia dois caminhos possíveis, muito diferentes, quanto ao alargamento do recurso à morte medicamente assistida.

Passando a citá-lo: “enquanto os ordenamentos jurídicos europeus em que a eutanásia se encontra prevista (concretamente, o holandês, o belga e o luxemburguês) admitem que a morte assistida possa ocorrer sem que o doente sofra de uma doença fatal ou em fase terminal, a exigência inversa é feita nos ordenamentos jurídicos do continente americano (concretamente, no canadiano, no colombiano e nos Estados federados dos Estados Unidos da América que despenalizam o suicídio assistido – Oregon, Washington, Vermont, Califórnia, Havai, Nova Jérsei, Maine e Distrito da Colúmbia)”.

E o mesmo Acórdão prosseguia: “esta diversidade de soluções normativas reflete a diferença de valoração e de ponderação atribuída às mencionadas exigências de natureza objetiva relativas à proteção da vida humana em confronto com a autodeterminação individual do doente”.

3. Na sequência da deliberação do Tribunal Constitucional, cumpriu ao Presidente da República devolver o Decreto inconstitucional à Assembleia da República, sem o promulgar, como impõe o artigo 279.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, o que ocorreu em 15 de março de 2021.

4. Volvidos uns meses, a Assembleia da República alterou o Decreto n.º 109/XIV, considerado inconstitucional, através do Decreto n.º 199/XIV, publicado no DAR em 19 de novembro de 2021, e chegado à Presidência da República no dia 25 de novembro.

5. O Decreto n.º 199/XIV, além de introduzir alterações para fazer face à decisão e à argumentação do Tribunal Constitucional, aproveita para aditar novas normas, que suscitam inesperadas perplexidades.

É o caso das normas respeitantes ao que era o requisito da exigência de “doença incurável e fatal”, do artigo 2.º, n.º 1, do diploma anterior.

Neste novo diploma, mantém-se essa exigência, nos mesmos exatos termos, no n.º 1, do artigo 3.º.

Só que no novo número 3 desse artigo 3.º, a exigência, para recurso à antecipação da morte medicamente assistida, passa a ser “doença grave ou incurável”.

E, aumentando a perplexidade, a alínea d) do novo artigo 2.º, contendo definições essenciais para a aplicação da lei, define a doença grave ou incurável como doença grave e incurável.

6. Isto é, no mesmo diploma e no mesmo artigo – o artigo 3.º –, temos:

1.º - A exigência de “doença incurável e fatal”, no número 1.

2.º - A exigência de mera “doença grave ou incurável”, no número 3.

E a “doença grave ou incurável” já é definida como “grave” e “incurável”, na alínea d) do artigo 2.º.

7. Ora, uma coisa é uma doença grave, outra uma doença incurável, outra ainda uma doença fatal.

O legislador tem de escolher entre exigir para a eutanásia e o suicídio medicamente assistido – que são as duas formas da morte medicamente assistida que prevê, entre a “doença só grave”, a “doença grave e incurável” e a “doença incurável e fatal”.

Isto, porque, no novo texto do diploma ora usa “doença grave ou incurável”, o que quer dizer uma ou outra, ora define aquela como grave e incurável, o que quer dizer, além de grave, também incurável, ora usa “doença grave e fatal”, o que quer dizer que, além de grave e incurável, determina a morte. Não apenas é grave, incurável, progressiva e irreversível, como acontece com doenças crónicas sem cura e irreversíveis. É fatal.

8. Esta uma primeira razão para solicitar à Assembleia da República que opte entre o exigido no número 1 e o exigido no número 3 do artigo 3.º. E, no caso de deixar de exigir a “doença fatal”, opte entre a doença ser grave ou incurável, como se diz no número 3 do artigo 2.º, ou cumulativamente grave e incurável, e como se diz na alínea d) do artigo 2.º.

Em matéria tão importante como esta – respeitante a direitos essenciais das pessoas, como o direito à vida e a liberdade de autodeterminação -, a aparente incongruência corre o risco de atingir fatalmente o conteúdo.

9. Admitamos que a Assembleia da República quer mesmo optar por renunciar à exigência de a doença ser fatal, e, portanto, ampliar a permissão da morte medicamente assistida, ou seja do suicídio medicamente assistido e da eutanásia.

Se assim for, alinhará pelos três Estados europeus citados pelo Tribunal Constitucional e pela Espanha – que, entretanto, aprovou lei no mesmo sentido -, os quatro com solução mais drástica ou radical, e afastando-se da solução de alguns Estados Federados norte-americanos, do Canadá e da Colômbia.

Aí suscita-se uma questão mais substancial.

Corresponde tal visão mais radical ou drástica ao sentimento dominante na sociedade portuguesa?

Ou, por outras palavras: o que justifica, em termos desse sentimento social dominante no nosso País, que não existisse em fevereiro de 2021, na primeira versão da lei, e já exista em novembro de 2021, na sua segunda versão? O passo dado em Espanha?

10. Note-se que a objeção respeita a esta segunda versão do diploma, e não alude ao processo que antecedeu a elaboração da primeira versão.

Não invoca argumentos eleitorais reportados a 2019, ou intenções referendárias subsequentemente debatidas.

Trata-se de saber em que bases se apoia a opção pela solução mais drástica e radical, se for essa a opção da Assembleia da República.

11. Note-se, ainda, que o que está em causa é o entendimento da Assembleia da República – ao ponderar o direito à vida, de um lado, e a liberdade à autodeterminação e realização pessoal, do outro – quanto ao sentimento dominante na sociedade portuguesa.

Sobretudo, atendendo a mudança operada em apenas nove meses. Exigia-se doença fatal. Passar-se-ia agora a dispensar tal exigência.

12. Como deixei claro em dois compromissos eleitorais, entre 2016 e 2021, não pesa na decisão que tomo qualquer posição religiosa, ética, moral, filosófica ou política pessoal – que, essa, seria mais crítica - mas, apenas – como aconteceu noutros ensejos similares – o juízo que formulo acerca do que corresponde ao que considero ser o sentimento valorativo dominante na sociedade portuguesa.

13. Esclareço ainda que considerei, após detida ponderação, quanto a esta segunda versão do diploma da Assembleia da República, não suscitar a fiscalização prévia da constitucionalidade pelo Tribunal Constitucional.

Por um lado, por haver prévias aparentes incongruências de texto a esclarecer, e, por outro lado, por desse esclarecimento decorrer, largamente, o tipo de juízo jurídico-constitucional formulável.

14. Finalmente, tomo esta decisão três dias depois de ter recebido o Decreto da Assembleia da República, e mal chegado de visita oficial ao estrangeiro, assim prescindido de prazos constitucionais mais longos, para ponderar quer o envio ao Tribunal Constitucional, quer a devolução ao Parlamento, por uma questão de respeito institucional por esse central órgão de soberania.

Seria constitucional, mas sinal de desrespeito, usar os prazos conferidos pela Constituição e decidir já depois de a Assembleia da República se encontrar dissolvida.

15. Em suma, com os fundamentos expostos, solicito à Assembleia da República que clarifique se é ou não exigível “doença fatal” como requisito de recurso a morte medicamente assistida e se, não o sendo, a exigência de “doença grave” e de “doença incurável” é alternativa ou cumulativa.

E, ainda, pondere, no caso de não exigência de “doença fatal”, se existem razões substanciais decisivas, relativamente à sociedade portuguesa, para alterar a posição assumida em fevereiro de 2021, no Decreto n.º 109/XIV.

16. Nestes termos, devolvo, sem promulgação, o Decreto da Assembleia da República n.º 199/XIV.

Marcelo Rebelo de Sousa”

Ver aqui a carta enviada ao Presidente da Assembleia da República (PDF)