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Discurso na Cerimónia de Tomada de Posse do XXIII Governo Constitucional

Senhor Presidente da Assembleia da República,
Senhor Primeiro-Ministro,
Senhores Ministros e Secretários de Estado agora empossados a quem agradeço a disponibilidade para servir Portugal,
Senhores Ministros e Secretários de Estado cessantes a quem agradeço o serviço de Portugal,
Excelências,
Portugueses,

Foi na madrugada de 24 de fevereiro que todos nos vimos ao espelho. E a imagem já não era a mesma.

Forças Armadas russas entravam em território ucraniano. Por ar, terra e mar. Depois de ensaiada a justificação de provocações contra regiões separatistas convertidas em Estados que pediam assistência militar.

Horas e dias volvidos, essa assistência, já de si uma agressão, alargava-se a mais território, proclamava a vontade de substituir o poder político da Ucrânia e invocava uma pertença histórica desse Estado à Rússia.

A operação militar especial passava a ser, mais claramente ainda, uma invasão.

E, de repente, todos descobrimos como tínhamos mudado.

Mudado, assim de repente? Perguntemo-nos.

Mudado para o quê, de diferente? Perguntemo-nos, também.

Mudado de repente?

Não. Não foi de repente. O que sucedeu, de repente, foi a evidência do que havia mudado, sem que muitos se dessem conta do alcance dessa mudança.

Sabíamos que a Rússia perdera, com a implosão da União Soviética, muita da sua influência mundial. Na Ásia, onde as antigas Repúblicas Soviéticas olhavam mais para a China. Na América Latina, onde outros estavam mais presentes. Nalguma África. Até na Europa de Leste, uma parte na União Europeia e na NATO, outra só na NATO, e outra ainda à porta de uma, de outra ou das duas.

Sabíamos que ninguém gosta de passar de potência mundial a potência regional. E que, depois dos anos da provação, viriam os da tentativa de recuperação.

Sabíamos que, na Ásia, a Rússia equilibrava a emergência da China com o diálogo com a Índia e a construção de novas pontes com a própria China.

Sabíamos que a Rússia continuava atenta e operacional no Próximo e Médio Oriente.

Sabíamos que, em África, a Rússia reaparecia a aconselhar, a fornecer capacidades militares, a influenciar poderes políticos. Regressava ao Centro de África.

Sabíamos que a Rússia estava cada vez empenhada na Europa. Nas eleições nessa Europa, no conhecimento profundo dos sistemas partidários europeus, dos novos movimentos sociais – dos sociais clássicos aos novíssimos, como os inorgânicos, os anti-sistémicos ou os mais críticos durante a pandemia.

Sabíamos da sua sensibilidade interventiva na Europa do Leste e nos Balcãs.

Sabíamos da influência crescente que ganhava no fornecimento de energia e nas ligações empresariais a importantes economias europeias.

Sabíamos que certas das mais fortes lideranças europeias apostavam mesmo nessas ligações como estratégia para integrar, moderar, condicionar a visão russa. Ao mesmo tempo, subavaliando a dependência energética de grandes economias da União Europeia.

A ideia era simples e atrativa: acomodar a Rússia do século XXI, que já não era ou é a União Soviética do século XX, mesmo do final desse século – somava e soma ao peso do Estado uma estrutura capitalista que se poderia entrelaçar com a estrutura capitalista europeia.

Sabíamos, ainda, que os Estados Unidos da América – assumida, desde o virar do século, a China como adversário ou concorrente essencial – sem deixarem de avisar acerca da dependência energética europeia relativamente à Rússia – haviam, durante quatro anos, de encarar com desprazer entendimentos económicos com a União Europeia e, em particular, os sistemas políticos europeus e as suas principais lideranças. E de isso ter coincidido com quatro anos largamente perdidos no reforço transatlântico na NATO e até na componente militar da União Europeia.

Sabíamos também que a pandemia havia provocado uma crise económica e social na Europa, aparentemente mais difícil de gerir do que em sistemas não democráticos.

Tudo isto parecia dar espaço e abrir caminho a uma visão discreta, mas eficaz, baseada nas fragilidades alheias, e nelas o domínio do ciberespaço, e usando as interdependências económicas, com um fim – a reafirmação de um poder mais do que regional. Um poder tão poder, pelo menos no imediato e em certas áreas, como o norte-americano ou o chinês.

Sabíamos que só a clara unidade europeia e transatlântica poderia fazer face a esta evolução muito recente.

Tudo isto sabíamos, ou pelos menos muitos de nós sabiam.

Não sabíamos era o momento, o pretexto, o modo e a intensidade do culminar de uma corrida contra o tempo.

Ou, se quiserem, de recuperação do tempo escoado ou antes perdido.

Hoje sabemos. E sabem-no, mais do que todos, os Ucranianos.

Porque viveram e vivem mais do que meras movimentações populacionais, eleitorais, híbridas, indiretas ou subtis.

Na Ucrânia, o que houve quem pensasse poder vir a ser uma chamada operação militar especial – instantânea, de reforço de áreas limitadas do território, de deposição fácil de um poder, com a adesão ou, ao menos, complacência de um povo irmão – tornou se, cruamente, numa manifestação de força, sem justificação e sem legitimidade, nem jurídica nem política, deparando com uma corajosa resistência e uma condenação universal – só com cinco países em cento e oitenta e um votantes nas Nações Unidas se opondo a essa condenação – e, ao mesmo tempo, de povos de quase todo o mundo, a começar naqueles tão laboriosamente conquistados pelos ideais de paz, de Direito Internacional, de multilateralismo, da diplomacia, apresentados como emblemáticos da política externa russa ao longo de décadas.

E, num longo e doloroso instante, o mundo olhou-se ao espelho e viu que tinha mudado sem disso se dar conta.

A Rússia parecia tudo fazer para reafirmar o seu estatuto de potência global. O tempo dirá se na hora errada, do modo errado, com suposições erradas sobre a resistência ucraniana, a resposta da União Europeia e da NATO e a reação da comunidade internacional.

Voltava alguma guerra fria (e mesmo quente, se necessário e dramaticamente muito quente para os Ucranianos), sem paliativos e figuras de estilo. E, neste caso, com o seu cortejo de mortos, feridos, migrações, violações humanitárias, antes de eventualmente o poderem vir a ser criminais, com uma expressão que a Europa já não via há alguns anos.

Endurecia o confronto Leste-Oeste.

A imprevisibilidade económica e financeira aumentava, quem sabe se por uns meses ou uns anos.

Custava mais a energia, subia mais a inflação, era necessário atenuar o choque no bolso das pessoas, sobretudo das mais pobres e carenciadas.

E a demorar a paz e, em particular, o rescaldo da guerra, podia ser desolador o panorama do crescimento, do investimento, do comércio internacional. A exigir correções de expetativas, de previsões, de políticas, várias delas pensadas para o mundo antes da guerra.

Dava mais trabalho recomeçar o caminho do diálogo, do multilateralismo, dos tão urgentes acordos sobre clima, oceanos, sustentabilidade.

Os armamentismos ganhavam novo terreno.

A autonomia energética, também. E a digital.

Por uns tempos, agendas essenciais, na saúde, na educação, nas lutas contra a miséria, a fome, as discriminações, tinham de conviver com apelos defensivos que as guerras, ainda que frias, sempre consigo trazem.

Estes alguns dos efeitos primeiros de um conflito que já não é entre uma União Soviética marxista-leninista e anticapitalista e um Ocidente capitalista.

Ou seja, em torno de ideologias e sistemas económicos e sociais.

Mas sim um conflito que nasceu como de poder geopolítico. E nasceu falho de pretextos próximos convincentes e ostensivo de atropelos de princípios essenciais de Direito Internacional.

Em que a escalada da agressão se converteu num choque sobre direitos humanos básicos, para milhões de civis transformados em alvos preferenciais, aparentemente à míngua de sucessos militares fulminantes.

Um conflito em que os Estados Unidos da América e a Europa, natural e rapidamente, convergiram e terão de retirar as lições do sucedido. Todas. Desde a sua unidade aos sistemas políticos, económicos e sociais e sua fragilidade, ao papel crucial da defesa e segurança e às interconexões energéticas e digitais.

E os outros grandes poderes globais e regionais – da China à Índia, mas, por igual, de outras potências, firmadas ou emergentes – têm muito a repensar para não perderem o pé no mundo que se encontra a redefinir.

Excelências,
Portugueses,

É neste parcialmente outro mundo – desde já a buscar a paz – que começamos um novo ciclo, em que o mandato do Governo empossado vai praticamente coincidir com o mandato dos autarcas eleitos em outubro e o meu mandato, que termina daqui a muito pouco menos de quatro anos, não assim com os mandatos específicos do poder regional.

O que é que os Portugueses esperam deste novo ciclo, dos seus autarcas, do seu Governo e do seu Presidente?

Como em todos os tempos de guerra – a da pandemia e a da prova de força russa –, esperam segurança, estabilidade, unidade no essencial, concentração no decisivo, recusa de primazia de incertezas ou tensões secundárias.

E o que é o essencial, neste ano de 2022?

Garantir que não esquecemos a lição destes dois anos de pandemia e de guerra, que não somos uma ilha, nem um oásis imune ao que não podemos controlar e se passa à nossa volta.

Garantir que o que sobrar da pandemia, na primavera e no verão, ou regressar como os antigos surtos de gripe, no outono e inverno, seja acautelado sem dramas e com vacinação a tempo, para que deixemos de viver num abre-fecha da nossa vida pessoal e coletiva.

Garantir que tudo o que seja possível se fará para ir protegendo dos custos dos bens básicos, custos que a guerra agravou e a virtual guerra fria pode ainda agravar mais, para que não saiamos da pandemia da saúde para a pandemia da inflação. Sem controlo, em clima de crescimento enfraquecido. Estagnação com inflação, ou estagflação, como se dizia essa sombra dos anos setenta do século passado – eis o que temos todos de evitar.

Garantir que os fundos vindos de Bruxelas avançam depressa no terreno, para remendarem o que há a remendar, mas, sobretudo, construir o que há a construir, para que alguma coisa de muito diferente possa ficar para além das pandemias vividas.

Garantir que o que vier a chegar aos bolsos do Portugueses signifique que filho ou neto de pobre não esteja condenado a ser pobre, que filho ou neto de residente nos interiores tenha melhor vida e não esteja condenado a lá definhar ou emigrar, que filho ou neto de residente nas Regiões Autónomas não esteja condenado a lá viver aquém dos padrões de vida noutros pontos do território, que filho ou neto excluído ou discriminado não esteja condenado a ser excluído ou discriminado.

Estas as missões mais urgentes.

Destas missões mais urgentes nascem as que são mais profundas, mas sem as quais o urgente ficará sempre urgente a cada crise, a cada ano, a cada mês, a cada dia.

Tratar bem da pandemia da saúde implica reformar com brevidade, e bem, o Serviço Nacional de Saúde.

Tratar bem da pandemia da inflação e a utilização rigorosa, transparente e eficaz dos fundos implica apostar muito mais ainda no crescimento – sólido e duradouro –, no investimento, nas exportações, na ciência, na educação, nas qualificações em geral, no emprego, claro, e sempre na inovação e autonomia energética e digital.

Tratar bem da pandemia da pobreza e das desigualdades sociais implica pôr no terreno uma recentemente afirmada estratégia global para o combate ao que divide, fragiliza, corrói a coesão social.

Tratar bem de todas essas pandemias implica melhor Justiça, prenunciada como meta prioritária na legislatura terminada, mas a exigir passos mais vigorosos.

Mas também mais eficaz sistema eleitoral, em que todos, cá dentro e lá fora, nos sintamos devidamente representados e com idênticas possibilidades de exprimir as nossas escolhas.

Excelências,
Portugueses,

São muitas missões para tão pouco tempo e um tempo marcado por tantos e tão difíceis embates.

Para cumprir estas missões, os Portugueses elegeram os seus autarcas.

E esperam deles, nos concelhos e nas freguesias no exercício da respetiva autonomia, a mesma devoção revelada na pandemia da saúde, com outros meios, um mais adequado estatuto funcional e financeiro, maior eficiência se possível, constante proximidade e identificação com as populações têm revelado.

Para cumprir essas missões, os Portugueses elegeram a maioria absoluta que suporta o Governo.

Poderiam ter escolhido manter o que estava, ou mudar para uma maioria formada pelas áreas políticas correspondentes ao Governo de 2011 a 2015, ou mudar para uma solução de equilíbrio e tendencial negociação entre os mais votados partidos portugueses.

Escolheram outro caminho, diferente de todos estes. Escolheram não manter o que havia, mas mudar. E mudar, dando ao partido do Governo, desta vez, maioria absoluta. Assim dizendo que lhe proporcionam condições excecionais para, sem desculpas ou alibis, poder fazer o que tem de ser feito.

Deram-lhe uma maioria absoluta. Não lhe deram – como nunca acontece numa democracia por definição de democracia – nem poder absoluto, nem ditadura de maioria.

E na maioria absoluta cabem todos os diálogos de interesse nacional.

Com todos – partidos, parceiros, setores sociais, económicos, culturais, políticos. Com convergências de regime nos casos e do modo em que tal faça sentido.

Sem que isso sirva de argumento para não decidir ou não fazer o que pode decidir e fazer bem por si só.

Deram a maioria absoluta a um partido. Mas também a um homem: Vossa Excelência Senhor Primeiro-Ministro.

Um homem que, aliás, fez questão de personalizar o voto – ao falar numa escolha entre duas pessoas para a Chefia do Governo.

Agora que ganhou, e ganhou por quatro anos e meio, tenho a certeza de que Vossa Excelência sabe que não será politicamente fácil que esse rosto, essa cara, que venceu, de forma incontestável e notável, as eleições, possa ser substituída por outra, a meio do caminho.

Já não era fácil no dia 30 de janeiro. Tornou-se ainda mais difícil depois do dia 24 de fevereiro.

É o preço das grandes vitórias inevitavelmente pessoais e intencionalmente personalizadas.

E é, sobretudo, o respeito da vontade inequivocamente expressa pelos Portugueses para uma legislatura.

Excelências,
Portugueses,

Para cumprir as missões nacionais os Portugueses reelegeram-me, há muito pouco mais de um ano, para seu Presidente.

Aqui estou. Como estive durante estes seis anos. E estarei.

Na busca da estabilidade e do compromisso, mas também de espaços de pluralismo e de afirmação das oposições, e de cultura de Democracia, de Liberdade e de Igualdade, ao serviço do interesse nacional.

Na proximidade, na explicação, na audição dos Portugueses, do mais jovem ou mais pobre ao mais idoso ou privilegiado, mas, em especial, dos que passam pelas suas vidas sem que ninguém cuide sequer de saber que existem.

Na decisão mais ingrata ou arriscada, se necessário for, sem hesitações ou inibições. Como aconteceu nas declarações e renovações do estado de emergência ou na convocação de eleições antecipadas.

Como sempre institucionalmente solidário e cooperante, para mais estes quatro anos de aventura coletiva: construindo, não destruindo; unindo, não dividindo; vigiando distrações e adiamentos quanto ao essencial, autocontemplações, deslumbramentos. Tentando evitá-los para não ter de intervir a posteriori.

No fundo, fazendo exatamente aquilo que a Constituição prevê e que Vossa Excelência reconheceu, em plena campanha eleitoral, ser uma garantia decisiva contra os temores eventuais de que a maioria absoluta se convertesse no que não pode, nem deve ser.

Desejando a Vossa Excelência e ao seu Governo, neste momento tão difícil no mundo e na Europa, todas as felicidades a que aspira e que os Portugueses merecem. Assim juntando à continuidade no reequilíbrio financeiro, à estabilização bancária, à preocupação com o clima e o digital, à aprendizagem com as tragédias dos incêndios, no seu primeiro mandato, à Presidência da União Europeia, à gestão da Covid, à negociação dos fundos europeus, no seu segundo mandato, a superação do rescaldo da pandemia e da guerra, o crescimento, a justiça social e a esperança no futuro e na juventude, neste terceiro.

Num tempo dificílimo, é verdade.

A requerer humildade, desapego pessoal, resistência física e psíquica, acerto nos recursos humanos e nos meios de ação, transparência nos propósitos e nos factos, espírito reformista e inabalável crença num futuro melhor para todos os Portugueses.

E, se possível, otimismo sempre.

Que tenha sucesso é o meu voto sincero.

A pensar nos dez milhões cá dentro e nos muitos milhões lá fora que não desistiram, não desistem, nunca desistirão de Portugal.