A certeza e a segurança jurídica são essenciais no domínio central dos direitos, liberdades e garantias.
Tendo presente que, em 2021, o Tribunal Constitucional formulou, de modo muito expressivo, exigências ao apreciar o diploma sobre morte medicamente assistida – que considerou inconstitucional – e que o texto desse diploma foi substancialmente alterado pela Assembleia da República, o Presidente da República requereu a fiscalização preventiva do Decreto n.º 23/XV, acabado de receber, para assegurar que ele corresponde às exigências formuladas em 2021.
Por outro lado, de acordo com a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, parece não avultar, no regime substantivo do diploma, um interesse específico ou diferença particular das Regiões Autónomas.
Não obstante, quanto ao acesso dos cidadãos aos serviços públicos de Saúde, para a efetiva aplicação desse regime substantivo, o diploma só se refere a estruturas competentes exclusivamente no território do Continente (Serviço Nacional de Saúde, Inspeção-Geral das Atividades de Saúde, Direção-Geral de Saúde), em que não cabem as Regiões Autónomas. O que significa que diploma complementar, que venha a referir-se aos Serviços Regionais de Saúde, que são autónomos, deverá, obviamente, envolver na sua elaboração os competentes órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira.
Requerimento enviado ao Tribunal Constitucional (PDF)
Excelentíssimo Senhor Conselheiro Presidente
do Tribunal Constitucional
Excelência,
Nos termos do n.º 1 do art.º 278.º da Constituição, bem como do n.º 1 do art.º 51.º e n.º 1 do art.º 57.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, venho requerer ao Tribunal Constitucional, com os fundamentos a seguir indicados, a apreciação da conformidade com a mesma Constituição das seguintes normas constantes do Decreto n.º 23/XV da Assembleia da República, que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal, recebido e registado na Presidência da República, no dia 4 de janeiro de 2023, para ser promulgado como lei:
- a norma constante da alínea d) do artigo 2.º, na parte em que define “doença grave e incurável”;
- as normas constantes das alíneas e) e f) do artigo 2.º, quando conjugadas com as normas constantes dos n.ºs 1 e 3, alínea b) do artigo 3.º;
- as normas constantes dos n.ºs 1 e 3, alínea b) do artigo 3.º;
- consequentemente, as normas constantes dos artigos 5.º, 6.º e 7.º;
- consequentemente, as normas constantes do artigo 28.º, na parte em que alteram os artigos 134.º, n.º 3, 135.º, n.º 3 e 139.º, n.º 2 do Código Penal.
1º
Pelo Acórdão n.º 123/2021, o Tribunal Constitucional decidiu pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma constante do seu artigo 2.º, n.º 1, com fundamento na violação do princípio de determinabilidade da lei enquanto corolário dos princípios do Estado de direito democrático e da reserva de lei parlamentar, decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, por referência à inviolabilidade da vida humana consagrada no artigo 24.º, n.º 1, do mesmo normativo; e, em consequência, e pronunciar-se pela inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 4.º, 5.º, 7.º e 27.º, todos do Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República.
2º
Mais especificamente, o Tribunal Constitucional considerou que as aludidas inconstitucionalidades respeitavam a uma das situações invocáveis para a morte medicamente assistida não ser punível – a atinente à gravidade da doença da pessoa em causa.
3º
Quanto a essa situação, mas não quanto à gravidade da lesão, existiria insuficiente densificação e determinabilidade da lei, implicando a respetiva inconstitucionalidade, nomeadamente, por tornar impercetível qual o regime concreto consagrado.
4º
Na sequência desta decisão, e devolvido o Decreto à Assembleia da República, sem promulgação, nos termos constitucionais, a Assembleia da República entendeu aprovar o Decreto n.º 199/XIV, o qual veio a ser submetido a promulgação.
5º
Este Decreto continha um conjunto de contradições de natureza conceptual, suscitando problemas sensíveis de interpretação e aplicação, razão pela qual veio a ser devolvido, sem promulgação, ao Parlamento para que tais inconsistências pudessem ser ultrapassadas.
6º
Nessa sequência, a Assembleia da República aprovou o Decreto n.º 23/XV, que agora se submete a apreciação preventiva da inconstitucionalidade, o qual pretendeu sanar as contradições apontadas à versão anterior, optando por um regime menos restritivo no tocante à morte medicamente assistida não punível, ao suprimir a existência de doença fatal e a alusão a “antecipação da morte”.
7º
Em conformidade com a clarificação efetuada, a situação relativa à gravidade da doença legitimadora da morte medicamente assistida não punível passou a ser a de “doença grave e incurável”, definida como “doença que ameaça a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e irreversível, que origina sofrimento de grande intensidade” [artigos 2.º, alínea d) e 3.º, número 1].
8º
A dúvida que se pode suscitar é a de saber se esta nova definição, e, em particular, a alusão a “grande intensidade” é de molde a corresponder à densificação e determinabilidade exigida pelo antes aludido Acórdão do Tribunal Constitucional, tendo em consideração a supressão do requisito da “doença fatal” e da alusão à “antecipação da morte”.
9º
Acresce que, de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 3.º do Decreto, parece que a exigência de verificação de situação de sofrimento de grande intensidade ocorre tanto quando exista lesão definitiva de gravidade extrema como nos casos de doença grave e incurável. Já na alínea e) do artigo 2.º, quando se define «Lesão definitiva de gravidade extrema», não se refere o sofrimento de grande intensidade, ao contrário do que sucede na alínea d) do mesmo artigo.
10º
É neste contexto que se afigura essencial que o Tribunal Constitucional se pronuncie quanto à questão de saber se, no quadro da opção fundamental ora assumida, o legislador cumpriu as obrigações de densificação e determinabilidade da lei, antes exigidas, ademais numa questão central em matéria de direitos, liberdade e garantias.
11º
Como se compreende, como já teve ocasião de afirmar o Tribunal Constitucional, uma indefinição conceptual não pode manter-se, numa matéria com esta sensibilidade, em que se exige a maior certeza jurídica possível.
Ante o exposto, requer-se, nos termos do n.º 1 do art.º 278.º da Constituição, bem como do n.º 1 do art.º 51º e n.º 1 do art.º 57.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, a fiscalização preventiva da constitucionalidade das normas constantes da alínea d) do artigo 2.º, na parte em que define “doença grave e incurável”; das alíneas e) e f) do artigo 2.º, quando conjugadas com as normas constantes dos n.ºs 1 e 3, alínea b) do artigo 3.º; dos n.ºs 1 e 3, alínea b) do artigo 3.º; consequentemente, as normas constantes dos artigos 5.º, 6.º e 7.º; consequentemente, as normas constantes do artigo 28.º, na parte em que alteram os artigos 134.º, n.º 3, 135.º, n.º 3 e 139.º, n.º 2 do Código Penal, do Decreto n.º 23/XV da Assembleia da República, por violação do princípio de determinabilidade da lei enquanto corolário dos princípios do Estado de direito democrático e da reserva de lei parlamentar, decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 165.º, n.º 1, alínea b), por referência à inviolabilidade da vida humana consagrada no artigo 24.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa.
Apresento a Vossa Excelência os meus mais respeitosos cumprimentos.
Lisboa, 4 de janeiro de 2023
O Presidente da República
(Marcelo Rebelo de Sousa)