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Presidente da República submete ao Tribunal Constitucional decreto da Assembleia da República

Sem prejuízo de reservas sobre uma questão de conteúdo, e na linha do entendimento que já vem dos tempos do Presidente Jorge Sampaio, considerando, agora, em particular, a especial incidência dos novos tipos de drogas nas Regiões Autónomas, o regime sancionatório nelas adotado e a regionalização dos serviços de saúde, fundamentais para a aplicação do novo diploma, o Presidente da República requereu hoje ao Tribunal Constitucional a fiscalização preventiva de constitucionalidade, por falta de consulta aos órgãos de governo próprio daquelas Regiões, do decreto da Assembleia da República que clarifica o regime sancionatório relativo à detenção de droga para consumo independentemente de quantidade e estabelece prazos regulares para a atualização das normas regulamentares, alterando o Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, e a Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro.

Requerimento enviado ao Tribunal Constitucional

Excelentíssimo Senhor Conselheiro Presidente
do Tribunal Constitucional

Excelência,

Nos termos do n.º 1 do art.º 278.º da Constituição, bem como do n.º 1 do art.º 51.º e n.º 1 do art.º 57.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, venho requerer ao Tribunal Constitucional, com os fundamentos a seguir indicados, a apreciação da conformidade com a mesma Constituição das seguintes normas constantes do Decreto n.º 77/XV da Assembleia da República, publicado do Diário da Assembleia da República, II Série - A, Número 267, de 1 de agosto de 2023, que clarifica o regime sancionatório relativo à detenção de droga para consumo independentemente da quantidade e estabelece prazos regulares para a atualização das normas regulamentares, recebido e registado na Presidência da República, no dia 9 de agosto de 2023, para ser promulgado como lei:

- As normas dos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º.

1.º

Pelo Decreto n.º 77/XV, o Parlamento procedeu à clarificação do regime sancionatório relativo à detenção de droga para consumo independentemente da quantidade e estabelece prazos regulares para a atualização das normas regulamentares.

2.º

Compulsados os elementos relativos ao procedimento legislativo, verifica-se que não houve lugar à audição dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas.

3.º

A Constituição impõe, no n.º 2 do artigo 229.º, a referida audição nos seguintes termos: “Os órgãos de soberania ouvirão sempre, relativamente às questões da sua competência respeitantes às regiões autónomas, os órgãos de governo regional.”.

4.º

O Tribunal Constitucional tem produzido extensa e consolidada jurisprudência sobre o direito de audição dos órgãos de governo próprios das Regiões Autónomas. Com efeito, afirma no Acórdão 800/2014 que “no artigo 227.º, n.º 1, alínea v), da Constituição inclui-se, entre os poderes das Regiões Autónomas, o de “pronunciar-se, por sua iniciativa ou sob consulta dos órgãos de soberania, sobre as questões da competência destes que lhes digam respeito, bem como, em matérias do seu interesse específico, na definição das posições do Estado Português no âmbito do processo de construção europeia”. Por sua vez, e mais precisamente, o artigo 229.º, n.º 2, determina que “os órgãos de soberania ouvirão sempre, relativamente a questões da sua competência respeitantes às regiões autónomas, os órgãos de governo regional”.”

5.º

E prossegue o Tribunal que “de acordo com essa jurisprudência, que remonta ao Parecer n.º 20/77 da Comissão Constitucional (Pareceres da Comissão Constitucional, 2.º Vol., INCM, 1977, pp. 159 e segs.), sendo reiterada posteriormente em acórdãos do Tribunal (v. Acórdão n.º 174/2009 e jurisprudência aí referida e, por último, o Acórdão n.º 747/2014), “[...] são questões da competência dos órgãos de soberania, mas respeitantes às regiões autónomas, aquelas que, excedendo a competência dos órgãos de governo regional, respeitem a interesses predominantemente regionais ou, pelo menos, mereçam, no plano nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em função das particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se revestem para esses territórios”.

6.º

Deste modo, para a avaliação da necessidade de audição dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas, tal como impõe a Constituição, importa verificar se a matéria objeto do Decreto em apreciação respeita a interesses predominantemente regionais ou merece, no plano regional, um tratamento específico.

7.º

Ora, importa referir que ambos os diplomas objeto de alteração foram sujeitos, na sua versão originária, a audição dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas. Tal sucedeu, de acordo com o referido no preâmbulo, quanto ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro. Já quanto à Lei n.º 30/2000, de 29 de novembro, o Decreto que lhe deu origem foi objeto de veto pelo Presidente da República Dr. Jorge Sampaio, sendo que constava da mensagem então enviada à Assembleia da República, o entendimento segundo o qual o diploma deveria ser submetido à audição dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas. Esta audição veio a ocorrer quanto à versão originária do diploma que entrou em vigor, bem como relativamente à sua primeira, e única até agora, alteração.

8.º

E compreende-se que assim seja: os regimes em causa possuem sérias implicações de saúde pública, com reconhecidas especificidades regionais. Para além das referidas incidências regionais de política pública de saúde, o diploma possui ainda uma relevante dimensão administrativa, com reflexo na organização regional.

9.º

Com efeito, e como referiu, em carta enviada ao Presidente da República, o Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira, “note-se que a Lei n.° 30/2000, de 29 de novembro, entre os demais aspetos regulados, determinou a criação de comissões para o processamento das contraordenações e a aplicação de sanções e que, nos termos do seu artigo 27.°, veio a ser aplicada, com as necessárias adaptações e regulamentação, na Região Autónoma da Madeira, pelo Decreto Legislativo Regional n.° 22/2001/M, de 4 de agosto, que, por sua vez, instituiu o órgão que na Região é o competente para atuar no âmbito do previsto na citada lei, a Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência. Este órgão da estrutura da administração regional autónoma, fruto da adaptação e regulamentação da Lei n.° 30/2000, para exercer as competências instituídas pela lei nacional no âmbito da Região Autónoma da Madeira, é convocado nas alterações legislativas aprovadas pelo Decreto n.° 77/XV, em apreço”.

10.º

Não por acaso, a exposição de motivos do projeto de lei do PSD, projeto de lei n.º 709/XV/1.ª, um dos que esteve na origem do presente Decreto, refere expressamente que “esta matéria assume especial relevância no que respeita às Regiões Autónomas, uma vez que o Relatório Anual referente a 2021 sobre “A Situação do País em Matéria de Drogas e Toxicodependências”, do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), recentemente conhecido, refere a problemática existente nas Regiões Autónomas da Madeira e dos Açores, onde em relação ao consumo de ecstasy, destaca “as regiões (NUTS II) dos Açores, Madeira e de Lisboa com as prevalências de consumo recente mais altas, quer na população de 15-74 anos, como na de 15-34 anos” e, em relação às Novas Substâncias Psicoativas (NSP), “o consumo recente destas bem mais prevalente sobretudo nos Açores (3,6% na população de 15-74 anos e 6,1% na de 15-34 anos), mas também na Madeira (0,4% na população de 15-74 anos e 0,8% na de 15-34 anos), por comparação com as outras regiões.”

11.º

E acrescenta que “o consumo das NSP tem sido objeto de uma luta incessante por parte Governos Regionais da Madeira e dos Açores, tendo sido aprovada pela Região Autónoma da Madeira (RAM) em 2012 legislação do foro contraordenacional sobre as mesmas (Decreto Legislativo Regional n.º 28/2012/M, de 25 de outubro)” O facto de existir legislação regional em matéria contraordenacional agrava a ausência de consulta do Decreto em apreciação na medida em que a articulação entre regimes pressupõe a intervenção regional.

12.º

O mesmo resulta do projeto de lei do PS, Projeto de Lei n.º 848/XV, referindo-se, expressamente na respetiva exposição de motivos, que “em Portugal, as NSP têm tido particular impacto nas regiões autónomas dos Açores e da Madeira, onde a circulação das referidas substâncias se tem revelado bastante expressiva”.

13.º

Importa ter em conta, de resto, que, em matéria de saúde, as Regiões Autónomas possuem competências próprias, designadamente no plano da Administração Regional, o que, desde logo, justifica a sua consulta, ademais quanto a matéria possui, como se viu, um indiscutível relevância e especial incidência de carácter regional.

14.º

Por outro lado, tanto o artigo 2.º como o artigo 4.º do Decreto remetem para portarias, no primeiro caso especificamente, no segundo, provendo a sua atualização, as quais não podem deixar de corresponder, no caso das Regiões Autónomas, a intervenções da Administração regional, como é designadamente o caso em matéria da saúde, cujas competências estão regionalizadas. De resto, como se viu, no caso da Região Autónoma da Madeira, foram criadas estruturas administrativas próprias, bem como a respetiva regulamentação, que não deixarão de ser afetadas pelo regime em apreciação.

15.º

Parece, pois, em linha com a jurisprudência do Tribunal Constitucional, que o regime em causa respeita a “interesses predominantemente regionais ou (que), pelo menos, mereçam, no plano nacional, um tratamento específico no que toca à sua incidência nas regiões, em função das particularidades destas e tendo em vista a relevância de que se revestem para esses territórios”, devendo, assim, ser sujeito, nos termos constitucionais, a audição dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas.

Ante o exposto, requer-se, nos termos do n.º 1 do art.º 278.º da Constituição, bem como do n.º 1 do art.º 51.º e n.º 1 do art.º 57.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, a fiscalização preventiva da constitucionalidade das normas dos artigos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º do Decreto n.º 77/XV da Assembleia da República, por violação do dever de audição dos órgãos de governo próprio das Regiões Autónomas, consagrado nos artigos 227.º, n.º 1, alínea v) e 229.º, n.º 2, todos da Constituição da República Portuguesa.

Apresento a Vossa Excelência os meus mais respeitosos cumprimentos.

Palácio de Belém, 17 de agosto de 2023

O Presidente da República

(Marcelo Rebelo de Sousa)