Senhor Presidente da Assembleia da República,
Senhor Primeiro-Ministro e de mais membros do Governo,
Senhora e Senhores Presidentes dos Tribunais Superiores,
Senhor Presidente António Ramalho Eanes,
Senhor Presidente Aníbal Cavaco Silva,
Senhores Embaixadores,
Ilustres convidados,
Senhoras Deputadas e Senhores Deputados,
Excelências,
Portugueses,
Permitam que, agradecendo o honroso convite da Assembleia da República para usar da palavra, partilhe com V. Exas algumas questões e ensaie respostas, a que não é alheia a vivência inesquecível, incluindo como constituinte, dos anos de 1974 a 1976.
Quem preparou o 25 de Abril?
Os inúmeros combatentes contra a ditadura desde 1926 mais o regime que não soube nem entender nem antecipar o fim do Império e o fim da própria ditadura.
Quem fez o 25 de Abril?
Os Capitães de Abril, então unidos no essencial e socorrendo-se, para legitimação interna e externa acrescida, do prestígio de líderes militares, neles avultando os futuros Presidentes António de Spínola e Francisco da Costa Gomes.
O 25 de Abril foi um movimento militar ou uma revolução?
Começou por ser um movimento militar, mas rápido se converteu em revolução, pela sua própria dinâmica, pelo apoio e mobilização de forças civis, até então proibidas e outras então emergentes, e pela adesão popular, esboçada no próprio dia 25 de Abril, simbolicamente acelerada no 1º de Maio e fortíssima nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto e no Sul do continente, e, depois, crescendo um pouco por todo o país.
Desde quando se estabeleceram as primeiras clivagens no Movimento das Forças Armadas, expressão e a seguir estrutura organizadora, que deu corpo ao Movimento dos Capitães?
Durante o Verão de 1974, com o reviver de uma clivagem dos apoiantes do Presidente António de Spínola, desde antes da tentativa gorada do 16 de março, e outros setores do MFA.
Contou essa divisão com equivalente divisão no mundo civil, nomeadamente no I Governo Provisório?
Sim. O Primeiro-Ministro Adelino da Palma Carlos e ministros influentes, em particular do Partido Popular Democrático, liderado por Francisco Sá Carneiro, defendiam a antecipação da eleição presidencial, para antes da Constituinte, para reforçar o papel liderante do Presidente e conter as dinâmicas revolucionárias em esboço.
Quando se deu a consumação do afrontamento aberto prenunciado pelo Verão de 1974?
Em 28 de setembro de 1974, na rua e em 30 de setembro, em Belém, com a renúncia do Presidente António de Spínola, invocando a radicalização revolucionária que rejeitava.
Entretanto, ainda antes dessa primeira rutura, o Presidente António de Spínola tinha deixado definitivo algum passo que, ele próprio, constituísse uma aceleração no processo revolucionário?
Sim, a 27 de julho de 1974, porventura para tentar manter equilíbrio já instável, reconhecera, a título definitivo, o pleno direito à autodeterminação e independência das províncias ultramarinas ou colónias, sem a generalidade e a ambiguidade ajustada na versão lida do programa do MFA, na noite de 25 de Abril.
Com o 30 de setembro de 1974, desapareceu a influência de António de Spínola no mundo militar e civil?
Não. Prosseguiu no mundo militar, com apoiantes, concorrentes e eleitos em vários Conselhos das Armas, e, no mundo civil, no relacionamento com o que viria a ser a frente ampla que Mário Soares iria liderar ao longo de 1975, indo do seu partido à direita. Frente que dá um primeiro sinal, encabeçado pelo PS, na saída do Movimento Democrático Português contestando o seu papel unitário, ainda em 1974.
Quando se deu, então, o confronto que assinalou o efetivo desaparecimento de António de Spínola do processo revolucionário português?
No dia 11 de março de 1975, ao ser antecipadamente detetada e controlada a sua movimentação militar embora limitada, e consumada a sua partida para o estrangeiro, onde continuou ativo, com apoiantes dentro do território e também em movimentos, como o MDLP e o ELP. Mas já sem presença física em Portugal na fase seguinte e mais agitada da revolução.
Qual foi a consequência desse 11 de março no MFA, e em geral no universo militar?
Abriu o caminho, logo na própria noite e dias posteriores, a um fluxo revolucionário muito mais intenso, com a extinção da Junta de Salvação Nacional e do Conselho de Estado, a criação do Conselho da Revolução, órgão central no poder militar e político nacional. Obrigou, ainda, à perda de poder do setor militar spinolista, que integraria a frente ampla que, meses mais tarde, seria uma das três componentes, a mais moderada, do processo revolucionário.
E qual foi o efeito no universo civil?
Fortaleceu o Partido Comunista Português, o Movimento Democrático Português e, em geral, os partidos e movimentos à esquerda do Partido Socialista, inclusive os sociais, já reforçados pela aprovação da lei consagrando a existência de uma só Confederação Sindical, herdeira da Intersindical criada no termo da ditadura.
Enfraqueceu os demais partidos, que passaram a ver na eleição da Constituinte o único modo de travar o ascenso revolucionário, ou seja, de travar a Revolução.
E como foi decidido pelos militares triunfantes avançar com a eleição da Assembleia Constituinte?
Essa eleição encontrava-se marcada para março e acabou por vencer, na noite de 11 de março, a sua realização, mas adiada para 25 de Abril, por um papel relevante do Presidente Francisco da Costa Gomes, que substituíra António de Spínola, no final de 1974, particularmente atento ao compromisso interno e ao clima Internacional.
Mas, foi exigido, como condição para a realização das eleições, que os Partidos assinassem um Pacto com o MFA, que acabou por prever um sistema de governo de forte dominância militar, com um Presidente da República-Presidente do Conselho da Revolução, Conselho da Revolução com poderes exclusivos sobre Defesa e Forças Armadas, de decisão quanto ao controlo da constitucionalidade, e, ainda, um como que direito de veto seu sobre Primeiro-Ministro e Ministros de pastas-chave.
E não apenas uma Câmara Parlamentar eleita pelo povo, mas duas, com outra Assembleia do MFA, constituída por militares, com poderes de acompanhamento da primeira.
Como aceitaram os partidos, do Partido Comunista Português ao CDS – que não votaria depois a Constituição, numa versão bem diversa da atual –, este Pacto?
Provavelmente, aceitaram para alguns com adesão e para outros, como último recurso para haver eleições e na expectativa de o mudarem, mal a Revolução conhecesse travagem ou reversão – é esta a minha suposição, já que fui, com Emídio Guerreiro, um dos dois únicos Presidentes Distritais do meu partido, a votar internamente contra o Pacto.
Uma vez eleita a Assembleia Constituinte, a Revolução ainda continuaria o seu fluxo e até quando e com que reflexos fora e dentro da Constituinte?
Continuou até ao fim do Verão de 1975 e, nos meses de setembro e outubro, já em refluxo, mas, talvez por isso, muito agitada, mais agitada tal como o rebojo no mar, logo após a maré cheia.
Militar e civilmente, com três setores cada vez mais distintos: militarmente o liderado por Otelo Saraiva de Carvalho e apoiado em partidos e formações de esquerda mais radical; o segundo centrado na área comunista, tendo em Vasco Gonçalves símbolo, sobretudo enquanto Primeiro-Ministro; e o terceiro, traduzido, no plano militar, no Documento dos Nove, e, no civil, na frente liderada por Mário Soares e o Partido Socialista, integrando o Partido Popular Democrático, o Centro Democrático Social, de mais forças à direita e aliados maoístas.
Na sociedade, conflitualidades, com afloramentos de violência política, com assaltos a sedes ora de partidos à esquerda, ora de partidos à direita, e mesmo violência física, com mortes pontuais à esquerda, atribuídas a movimentos de direita clandestinos, e à direita, atribuídos a setores de esquerda radical. E, claro, o estado de manifestação constante, envolvendo, de um lado, a decisiva manifestação da Fonte Luminosa, aglutinando a frente atrás mencionada, e, do outro, o cerco laboral e político à Constituinte, onde uns tentavam prolongar a Revolução, aceitando como melhor aquela quase-Constituição, e, outros travar a Revolução, congelando aquela quase-Constituição, na expetativa de a reformularem no termo do refluxo revolucionário.
Tendo muitos destes últimos partido para o Porto para garantir, se necessário, o funcionamento da Constituinte até ao fim.
Senhoras e Senhores Deputados,
Excelências,
Perdoem-me tão longa narrativa, que quis o mais objetiva possível, sabendo sempre subjetiva, mas milhões de Portugueses com menos de sessenta anos não têm memória praticamente nenhuma da Revolução.
E, é volvido o evocado, que se vive o 25 de Novembro de 1975.
Em si mesmo, vitória do Grupo dos Nove sobre os dois outros setores militares, que, aliás, se haviam, várias vezes, entre si afastado.
Supervisionada pelo Presidente Francisco da Costa Gomes, que, sob a influência dos Nove, substituíra os comandos das regiões militares de Lisboa e do Porto com Vasco Lourenço e Pires Veloso, chamara, no dia 25, para Belém o Comandante do COPCON e teria decisiva conversa com o Secretário-Geral do Partido Comunista Português.
Na vitória militar se conjugaram vários fatores, e unidades, aliás, mais tarde condecoradas todas elas pelo Presidente Eanes e com particular relevo a Unidade dos Comandos, e, também personalidades, que compuseram e apoiaram o Grupo dos Nove, nelas avultando, estrategicamente Ernesto Melo Antunes, operacionalmente António Ramalho Eanes e na execução Jaime Neves. Todos eles reconhecidos pela democracia, este último condecorado pelo Presidente Mário Soares e pelo atual Presidente da República.
António Ramalho Eanes assumiria, então, naturalmente a Chefiado Estado-Maior do Exército e seria o candidato presidencial eleito em meados de 1976.
No plano civil, Mário Soares culminaria a liderança frentista no ano de 1975. Sendo certo que, integrando outras áreas partidárias, já com Francisco Sá Carneiro regressado, no final de setembro, durante uma ausência por doença, praticamente durante esse ano todo.
Diogo Freitas do Amaral, sempre no CDS, e outras sensibilidades de centro-direita e de direita moderada e radical solidárias. Todos vendo como resultado lógico do 25 de Novembro, a renegociação de nova Plataforma de Acordo Constitucional MFA-Partidos.
E, aqui, não há como esquecer dois discursos históricos da constituinte. Um de Mário Sottomayor Cardia, o primeiro a exigir essa revisão, o segundo de Sophia de Mello Breyner, a primeira a poder evocar a sua autoridade moral relativamente à liberdade e à democracia no nosso país.
Nem toda essa Frente desejava o mesmo epílogo do 25 de Novembro. Francisco Sá Carneiro aceitaria, com reticências, em dezembro, a pedido dos Nove manter coligação tripartida em funções, no quadro do novo Pacto MFA-Partidos.
Já a direita civil e militar mais marcada ou radical perderia a sua reivindicação de ilegalização do Partido Comunista Português, afastada perentoriamente por Ernesto Melo Antunes, que atacara, aliás, dias antes, a radicalização deste partido, nas vésperas do 25 de Novembro.
Ernesto Melo Antunes foi reconhecido, uma vez mais, recentemente, pelo Presidente António Ramalho Eanes, como o principal estratega do 25 de Abril e também decisivo, em 25 de Novembro.
Como efeitos imediatos do 25 de Novembro, sobressaem, por um lado, a conclusão do refluxo revolucionário iniciado no fim do Verão desse ano, e, nessa medida, o termo da Revolução. E, por outro, a aceleração do II Pacto MFA-Partidos, que não altera substancialmente a Constituição Económica e Social, que vigoraria de forma muito semelhante ao I Pacto até à revisão constitucional de 1989, mas que moderaria, apreciavelmente, a Constituição Política, mantendo, até 1982, a tutela militar, mas com reforço apreciável da componente eleitoral do sistema de governo, em especial extinguindo a Câmara Parlamentar representativa do Movimento das Forças Armadas.
Quer o que fica dito significar que a democracia política eleitoral plena fica definitivamente consagrada em 25 de Novembro de 1975?
Não. Apenas sete anos depois com a primeira revisão da Constituição.
Quer, ao menos, dizer que se dá uns passos importantes relativamente à fase de maior fluxo da Revolução?
Sem dúvida, sem dúvida.
Pode afirmar-se que, com o 25 de Abril de 1974, começa a liberdade e, em 25 de Novembro de 1975, a democracia?
É mais rigoroso dizer que, a 25 de Abril de 1974, se abre um caminho, complexo e demorado, porque atravessou a revolução, e, depois, a transição constitucional de sete anos, para a liberdade e a democracia, e que, a 25 de Novembro de 1975, se dá um passo muito importante no caminho dessas liberdade e democracia.
O primeiro, o 25 de Abril de 1974, foi não só o primeiro, como o mais marcante em termos históricos – em termos de fim do ciclo imperial de cinco séculos, em termos de fim da ditadura de meio século, em termos de configuração primeira do sistema de partidos, definição do sistema eleitoral e dos parceiros sociais.
Sem ele, no momento em que ocorreu, não haveria 25 de Novembro de 1975.
Nem o que este significou de cenário vencedor dos vários cenários que cabiam na unidade feita de diversidades que foi o 25 de Abril.
O segundo, o 25 de Novembro de 1975, foi muito significativo, porque, sem ele, no tempo em que existiu e tal como se processou, o refluxo revolucionário teria sido mais demorado, mais agitado e mais conflitual, e, para alguns, poderia mesmo provocar uma guerra civil. Assim não aconteceu, não houve guerra civil.
Senhoras e Senhores Deputados,
Excelências,
Eis por que razão não existe contradição entre o 25 de Abril – como há décadas é assinalado – enquanto data maior, porque representou um virar de página historicamente mais profundo, no Império, na ditadura e como primeiro passo de abertura para a liberdade e a democracia, e o evocar o 25 de Novembro de 1975 – como, aliás, as Forças Armadas celebraram ininterruptamente até 1988, sendo Presidentes António Ramalho Eanes, e Mário Soares, e, depois, sucessivos Presidentes da República várias vezes evocaram, inclusive o atual, junta-se hoje o acento parlamentar – tudo sublinhando o contributo para a passagem da revolução já no seu refluxo para a primeira versão, transitória, da Constituição da República Portuguesa.
A História é feitas destas conjugações.
Entre o mais vasto e abrangente e o que lhe dá expressão específica, mesmo que não definitiva, um ano e meio volvidos.
E as conjunturas vão reinventando leituras variadas de conjugações.
Sabendo todos nós que não há fim da História.
Ela reescreve-se, dia após dia, tal como se constrói, dia após dia.
Assim, a construção e a sua reescrita correspondam ao efetivamente vivido e queiram dizer mais liberdade, mais democracia, mais democracia política, económica, social e cultural.
Mais Portugalidade com passado, mas também com futuro.
Por isso aqui estamos hoje reunidos.
Viva a Liberdade!
Viva a Democracia!
Viva Portugal!