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Sítio Oficial de Informação da Presidência da República Portuguesa

Discurso do Presidente da República na Sessão Solene Comemorativa do 51.º aniversário do 25 de Abril

Senhor Presidente da Assembleia da República,
Senhor Primeiro-Ministro e demais membros do Governo,
Senhores Presidentes dos Tribunais Superiores,
Senhor Presidente António Ramalho Eanes, bem-haja por mais uma presença nesta Sessão, que só foi possível largamente devido ao seu contributo a Portugal.
Senhor Presidente João Bosco Mota Amaral,
Senhores Capitães de Abril, há 51 anos, sem vós, não estávamos aqui hoje, bem hajam.
Senhores Deputados da Assembleia Constituinte, sem vós, também, aqui não estaríamos, no dia de hoje, a celebrar as eleições e a Constituição de Portugal.
Senhoras e Senhores Deputados,
Autoridades militares, civis, religiosas,
Ilustres convidados,
Portugueses.

Nesta Sessão Solene, unem-se quatro dimensões, dela fazendo um momento singular na nossa História democrática.

A celebração do 25 de Abril, na Casa da Democracia, uma tradição iniciada em 1977, em que me honro de participar, pela décima e última vez, como Presidente da República Portuguesa.

A homenagem aos Constituintes de 1975, recordando a sua histórica eleição, mas também o seu trabalho e a sua coragem, motivo de orgulho e saudade para nós que vivemos o primeiro voto universal em mais de oito séculos e meio de nacionalidade e depois o trabalho de cerca de um ano insano neste Hemiciclo.

A simbólica primeira Sessão evocativa do 25 de Abril efetuada com a Assembleia dissolvida, sinal de continuidade e estabilidade democrática em Portugal.

A coincidência, também por uma primeira vez, de tal Sessão Solene com o luto nacional, por ocasião da morte de Francisco, Chefe de Estado sucessor de quem primeiro reconheceu a independência de Portugal e Supremo Líder de uma Igreja com maior número de fiéis na nossa Pátria, coincidência que, aliás, explica o voto de pesar unanime hoje adotado nesta Câmara, bem como as múltiplas referências efetuadas por sucessivos oradores.

Também eu não fugirei a este último contexto excecional.

Falarei, pois, de Francisco e do que a sua vida e obra pode ter a ver com o que significou e pode significar o 25 de Abril.

O 25 de Abril – passo decisivo dos jovens Capitães –, nasceu num ambiente mundial muito tenso: guerra fria, mas dura, entre Estados Unidos da América e União Soviética, corrida aos armamentos, crise económica causada pelo primeiro choque petrolífero, conflitos dispersos, um dos quais crónico no Médio Oriente, crescimento das desigualdades entre continentes e povos, miséria em muito do então conhecido por Terceiro Mundo.

Como não encontrar nos recentes apelos de Francisco, durante doze anos, e até há cinco dias, alguns dos mesmos dramas, ou outros iguais ou maiores, tornando ainda mais urgentes a paz, a justiça, a luta contra a pobreza, a dependência, a prepotência de poderes políticos, económicos e sociais, as desigualdades agravadas, as crises sucessivas e cumulativas?

O 25 de Abril nasceu, também, num ambiente nacional de negação das liberdades, de proibição do pluralismo, de ausências básicas de saúde para mães, recém-nascidos e crianças, de taxas dramáticas de mortalidade infantil, de curta e insuficiente escolaridade obrigatória, de incipiente segurança social para trabalhadores rurais, para trabalhadores domésticos, para alguns setores da indústria e serviços e, ao mesmo tempo, de um milhão de emigrantes forçados, de guerras sem horizontes de paz.

Como não deparar, nas palavras de Francisco, com a defesa desses valores estropeados, há cinquenta anos, mas, nestes dias, ainda atingidos num plano muito diverso, mas atingidos em tantas e tantos, nacionais ou estrangeiros, emigrantes e imigrantes, flagelados por antigas, novas e novíssimas pobrezas, sem-abrigo, com abrigo, mas sem casa, com direitos e liberdades formalmente reconhecidos numa Constituição, mas suprimidos no mesmo dia da entrada em vigor da Constituição, isto é, sem garantias substanciais há 50 anos e hoje deparando com novos desafios que importa enfrentar?

No mundo, desafios pungentes idênticos ou acrescidos.

No nosso pequeno grande mundo, reptos diversos, muitos deles similares, outros não menos exigentes.

Uns e outros tão certeiramente apontados por Francisco.

Uma vez, dez vezes, centenas de vezes.

E que, à sua maneira, haviam despertado anseios prementes de mudança. Como o foram, entre nós, os anseios de Abril.

Só que não basta o espírito. É preciso vivê-lo, dia após dia, ano após ano, década após década. Dando-lhe viço, para não estiolar.

Atentemos nisto: o que fez de Francisco um quase parente muito próximo de muitos de nós por todo o mundo – como que avô, pai, irmão mais velho, amigo indefetível, camarada de percurso –, ultrapassando a mera invocação de valores ou princípios para os encarnar – foi o ter conhecido as ruas da Humanidade, percorridas com os seus sapatos cambados, em Buenos Aires, como em África, na Ásia-Pacifico, nas Américas, na Europa, e, mais do que isso, o ter feito um esforço para conhecer e ler por dentro o sofrimento – material e espiritual –, escondido por detrás de cada rosto, de cada sonho, de cada desespero, e lidar com cada uma e cada um como se fosse a mais importante ou o mais importante, a única ou o único, destinatários da sua palavra, do seu gesto, do seu desvelo, da sua disponibilidade.

Sem recusas, sem ódios, sem limites, sem intolerâncias, sem fronteiras entre os puros e os impuros, os bons e os maus. Na inspiração bíblica que diz: “na casa do meu Pai há muitas moradas”.

Concorde-se ou descorde-se.

Para os que concordam chame-se a isto amor, compaixão, bondade, partilha, camaradagem, fraternidade com esperança, aceitação da diferença, entrega, despojamento. Chame-se como se quiser, este modo de desapego pessoal e devoção total faz lembrar a madrugada “que eu esperava, o dia inicial, inteiro e limpo”, de que falava Sophia de Mello Breyner, ao descrever Abril.

Mas, vale a pena insistir na questão: o que é que têm a ver os factos, os problemas e o modo de Francisco com eles lidar, ou seja o espírito e o espírito vivido, o que é que tem a ver com o 25 de Abril, o de 1974, o de cada ano dos 51 já volvidos, o de hoje, o de cada ano ainda por viver?

Tudo, tudo.

Dignidade humana, paz, justiça, liberdade, igualdade, solidariedade, fraternidade, abertura, inclusão, serviço dos outros, preferência pelos ignorados, omitidos e silenciados. E, sobre essa confluência de imperativos humanos, humildade. A humildade de reconhecer o erro, de reconhecer a imperfeição, de reconhecer a necessidade do recomeço.

No mundo, tal como no nosso mundo.

Sem senhores absolutos, monopolistas da verdade, donos da vida dos demais.

Pelo contrário, humildes servindo os outros do começo ao fim da vida.

Francisco no-lo recordou e recorda.

Amanhã vai a enterrar. Sem nome senão o seu: Francisco.

Nem Papa, nem Cardeal, nem Bispo, nem Bispo de Roma.

Só Francisco.

Num recanto de um templo. Por detrás de uma discreta porta que bem pode considerar-se que substitui o que porventura ele desejaria como uma campa rasa ou um gavetão na terra, num cemitério da sua Terra Natal.

Recordarmos que o infinitamente maior é infinitamente o mais pequeno de todos.

E de que assim terminaremos todos.

Terminarão os que dominavam ou que pensavam dominar o mundo.

Em pó. Ou cinza.

Um sinal convidativo da pobreza material e espiritual a não esquecer nunca.

Para que as evocações, como a de hoje, a do 25 de Abril, sejam mais doação do que proclamação, mais encarnação de serviço do que afirmação de missão já cumprida, mais futuro do que passado.

Para que não se confunda o fundamental com o acessório.

O duradouro com o efémero.

O duradouro é o espírito que deve ser exigente, renovador, desbravador de novos caminhos, de novas metas. Com a sua vivência mobilizadora.

O efémero é a autocontemplação de cada momento, o autocomprazimento de cada, aparente, sucesso, a autoflagelação de cada infortúnio.

Estas sessões existem para que o duradouro seja mesmo duradouro e o efémero seja mesmo efémero.

25 de Abril sempre? Sim, sobretudo, se com a incessante busca dos valores, o pleno e descomplexado abraço a todas as pessoas e a atenção a todas as coisas e a radical humildade que viveu e nos ensinou a viver Francisco.

Que para sempre, viva esse espírito.

Viva a liberdade, viva a democracia, viva Portugal.

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