O Presidente da República decidiu devolver à Assembleia da República, sem promulgação, o Decreto n.º 43/XV, sobre a morte medicamente assistida.
Com efeito, o Presidente debruça-se, apenas, sobre o aditamento introduzido nesta nova versão, que vem considerar que o doente não pode escolher entre suicídio assistido e eutanásia, pois passa a só poder recorrer à eutanásia quando estiver fisicamente impedido de praticar o suicídio assistido.
Como resultado dessa inovação, importa clarificar quem reconhece e atesta tal impossibilidade. Por outro lado, convém clarificar quem deve supervisionar o suicídio assistido. Isto é, qual o médico que deve intervir numa e noutra situação.
Como sempre referiu, o Presidente da República entende que em matéria desta sensibilidade não podem resultar dúvidas na sua aplicação, pelo que solicitou à Assembleia da República que clarificasse estes dois pontos, tanto mais que se trata de uma solução não comparável com a experiência de outras jurisdições.
Mensagem enviada ao Presidente da Assembleia da República:
Palácio de Belém, 19 de abril de 2023
A Sua Excelência
O Presidente da Assembleia da República,
Assunto: Decreto da Assembleia da República n.º 43/XV, que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal
Dirijo-me a Vossa Excelência, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 136.º da Constituição, transmitindo a presente mensagem à Assembleia da República sobre o Decreto n.º 43/XV, que regula as condições em que a morte medicamente assistida não é punível e altera o Código Penal, nos termos seguintes:
1. Pelo Acórdão n.º 5/2023, o Tribunal Constitucional decidiu pronunciar-se pela inconstitucionalidade da norma constante da alínea f) do artigo 2.º, conjugada com a norma constante do n.º 1 do artigo 3.º, ambas do Decreto n.º 23/XV.
2. Fê-lo com fundamento na violação do princípio da determinabilidade das leis, enquanto corolário dos princípios do Estado de direito democrático, da legalidade, na sua dimensão de reserva de lei, e da segurança jurídica e proteção da confiança, decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 165.º, n.º 1, alínea b), da Constituição da República Portuguesa, por referência à inviolabilidade da vida humana, consagrada no artigo 24.º, n.º 1, que regulava as condições em que a morte medicamente assistida não seria punível, para o efeito alterando o Código Penal.
3. Fundou-se a decisão do Tribunal Constitucional na convicção de que a formulação da alínea f) do n.º 2 podia suscitar dúvidas interpretativas quanto ao seu exato âmbito de aplicação, uma vez que, ao elencar «sofrimento de grande intensidade» como o sofrimento físico, psicológico e espiritual, não resultava claro se tal enumeração seria cumulativa ou alternativa.
4. Isto é, se se exigia, cumulativamente, sofrimento físico, psicológico e espiritual, ou se bastaria um deles para justificar o recurso à morte medicamente assistida – o físico, ou o psicológico ou o espiritual.
5. O legislador retomou agora a versão originária da norma, a qual se limitava a referir o sofrimento de grande intensidade, sem especificar de que natureza se tratava.
6. O legislador não se limitou, todavia, à revisão da norma sobre a qual recaiu o juízo de inconstitucionalidade do Tribunal Constitucional, mas resolveu ir mais longe, alterando duas outras normas, estas relativas à relação entre o suicídio assistido e a eutanásia.
7. Com efeito, resultava de declarações de voto do mencionado Acórdão n.º 5/2023 a censura pelo facto de o legislador não ter determinado qualquer relação entre o suicídio assistido e a eutanásia, parecendo que era possível a opção entre ambos.
8. Ora, nesta nova versão, o doente deixa de ter o direito à escolha entre suicídio meramente assistido ou eutanásia.
9. Na verdade, foi aditado um novo n.º 5 ao artigo 3.º, dispondo que “A morte medicamente assistida só pode ocorrer por eutanásia quando o suicídio medicamente assistido for impossível por incapacidade física do doente”.
10. De igual modo, foi alterada a última parte do n.º 2 do artigo 9.º, estabelecendo-se que a administração de fármacos letais pelo médico ou profissional de saúde ocorre quando o doente estiver fisicamente incapacitado de os autoadministrar.
11. Suscita-se, assim, a questão de saber quem define tal situação. bem como a compatibilização do disposto no artigo 16.º, n.º 1 e no artigo 19.º, com a supressão da escolha entre suicídio meramente assistido ou eutanásia.
12. Uma vez que, nos termos do mesmo n.º 2 do artigo 9.º, compete ao médico orientador informar e esclarecer o doente sobre os métodos disponíveis para praticar a morte medicamente assistida e que o mesmo médico orientador tem de estar presente no momento da administração ou autoadministração dos fármacos letais, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 10.º e do artigo 14.º, não será imperativo que lhe compita também a ele pronunciar-se sobre a incapacidade física do doente? Ou a quem compete então? Ao médico especialista?
13. E que caiba ao médico orientador e não a outro médico presente a supervisão médica prevista no n.º 2 do artigo 9.º? Agora, ainda mais, por força do aditamento da parte final do preceito?
14. Em suma, não me reportando a nenhuma das múltiplas questões já objeto de apreciação e de decisão no passado, por parte do Tribunal Constitucional e da própria Assembleia da República – desde o respeito do direito à vida, dos pressupostos ou requisitos do recurso à morte medicamente assistida não punível e suas modalidades ou à densificação desses pressupostos ou requisitos, refiro-me tão somente às matérias explicitamente tratadas nesta quarta versão do diploma legal.
15. Concretamente, solicito à Assembleia da República que pondere clarificar quem define a incapacidade física do doente para autoadministrar os fármacos letais, bem como quem deve assegurar a supervisão médica durante o ato de morte medicamente assistida.
16. Numa matéria desta sensibilidade e face ao brevíssimo debate parlamentar sobre as duas últimas alterações, afigura-se prudente que toda a dilucidação conceptual seja acautelada, até pelo passo dado e o seu carácter largamente original no Direito Comparado.
Nestes termos, devolvo, sem promulgação, o Decreto da Assembleia da República n.º 43/XV.
O Presidente da República
Marcelo Rebelo de Sousa
Ver aqui a carta enviada ao Presidente da Assembleia da República (PDF)